segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Ciúme


Suplico-te… Por favor, não!

Suou uma pancada seca. Suou o eco de um corpo caindo no chão.

Está tudo tão escuro, tão húmido, tão silencioso… Acordo com um sabor a terra nos lábios, à minha volta um cheiro a humidade. A luz que me iluminava momentos atrás foi-me roubada. Assim com um esticão, sem que me dessem alternativa!
Já não vejo mais o Sol sobre a minha cabeça, nem o reflexo no espelho a minha frente e nem te vejo a ti do outro lado da rua, no entanto sei que se aclamar pelo teu nome o som trémulo vai-se reflectir na tua existência. Resta apenas um lençol húmido e espesso. Não sei onde estou. Apenas sei que este sítio, seja lá onde for, está tão escuro, parece-me tão assustador.

Fico quieto, assimilando os sons que me rodeiam. Paços que se arrastam em direcções que nem sei, um mais que me chama a atenção e ia jurar que te avistara por um instante mascarada de medo e terror. Mas novamente a escuridão me engole no seu leito devastador e me perseguem os sons vagabundos, porém de uma forma qualquer consigo sorrir pelas recordações despejadas na minha razão – o teu corpo insinuante, os teus seios delicados por baixo de um vestido de ceda. Eis que mais uma vez não compreendo. Afinal como vim aqui parar? A dormência provocada pelo desconhecido é tal que já nem sinto medo, apenas vazio.
Oiço vozes destorcidas, risos de crianças, paços… Mais paços que se avizinham cautelosos, mas precisos na minha direcção, como que se o que se aproxima soubesse exactamente onde me encontro mesmo por debaixo de toda esta atmosfera densa e de toda a escuridão.

És tu?...

Mas não houve retorno e as palavras foram engolidas pelo vácuo. Apercebo-me de algo a roçar pelo chão, como um manto, e por um momento que julguei ser delírio consegui deslumbrar um vulto sem rosto e o reflexo de uma lâmina aguçada.
Estou cego e fraco. Cego, pois não te vejo diante de mim e muito menos oiço os teus suspiros despreocupados por entre aquelas tardes de Verão soltas no tempo. Não sinto o cheiro da tua pele fresca, nem a suavidade do teu toque no meu rosto. Sinto-me fraco por não sentir o palpitar do teu coração, sempre tão agitado, tão impaciente…

Sinto-me tão fraco e tão sujo, vulnerável, a mercê de quem por ali passar. Creio que ela não tardará, pois assim que sentir o meu odor impregnado na espessura da névoa circundante virá ao meu encontro. Consegues vê-la? Consegues senti-la?
A vagabunda solidão que caminha com paços incertos, ninguém a quer, todos a rejeitam e ela tem sede de vingança, tem vontade de beber de mim e da minha mágoa para se saciar dos desgostos do mundo, eu sinto-o, eu consigo senti-lo!
Lá está ela, por entre aquela selva urbana, escondida numa esquina como um predador na savana e a qualquer momento lançar-se-á sobre mim – a sua presa fácil – e serei o seu banquete. Pouco me restará, pois ela já me consome. Cada pedaço do meu corpo, cada fragmento da minha alma e ela saboreia-o vagarosamente, caprichosamente, até me sufocar.
Sinto um gelo que se impregna nos meus ossos e estala, um gelo que me queima a carne, sugando-me a vitalidade esvaziando-me de tudo o que sou.

Porquê eu? Porque fizeste isto?...

Uma vez mais um som tímido que se perde na imensidão da noite, ninguém respondeu. E caem na lama as tantas perguntas que ainda me assombram a mente, tenebrosas recordações regelam ainda mais o pouco que me resta. E uma vez mais apercebi-me da tua presença – que eu tanto acreditei – mas que não passou da sombra de alguma coisa que por ali passou.
Ela voltou, com o seu manto a roçar o chão numa monotonia melódica. A figura sem rosto, erguendo uma ceifa na mão esquerda deteve-se por instantes e com um movimento descendente fez deslizar uma lâmina aguçada e do nada um reflexo sem precedentes que me cega e novamente uma sensação de nada e de vazio.

Abri os olhos com um esforço sobrenatural. Já não sentia o cheiro da terra molhada entranhando-se pelo meu nariz. Desta vez estava sentado sobre algo macio e naquele instante apercebi-me que me estava a mover. A cadeira onde estava, aparentemente de um cinema ou anfiteatro, elevava-se sobre todas as outras em direcção a um par de cortinas cerradas de um vermelho profundo e carregado. Ao paço que me aproximava, as cortinas por sua vez deslizaram em direcções opostas revelando uma tela sombria… Inicialmente vislumbrei tudo negro, mas a medida que foi sendo conduzido pude começar a aperceber-me dos pormenores. Era um retrato esboçado. Um borrão claro sobre uma textura negra seria provavelmente a lua reflectindo naquilo que pareciam ser as fachadas macilentas de prédios em ruínas, a sua prata esmorecida. Nas planícies ao longe surgiram copas de árvores nuas, sacudidas por ventos fortes e três personagens começaram a ganhar contornos distintos. Vislumbrei cabelos louros esvoaçando com o vento e um rosto expresso de dor e repugna; um homem trajando uma capa negra e comprida, com um chapéu escondendo-lhe o rosto e no chão jazia uma figura sobre uma poça de sangue escura misturada com a terra.

Cai vertiginosamente num mar de sensações turbulentas, senti a minha cabeça a inflamar de dor e o meu peito dilacerado regurgitando o elixir da vida. Um misto de ódio e de misericórdia e num momento comum tudo passou a fazer sentido.
E todas as memórias, e todas as caminhadas a beira-mar, aqueles tantos silêncios cúmplices que partilhamos… Tudo apagado num momento de horror, uma lamina cravada que me esvazia o peito da vida que me resta, dois corpos que se afastam na cumplicidade da noite, e o som seco do meu cadáver caindo sobre um manto de espinhos.

Porquê?...

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